Número de detidos por crimes sexuais contra crianças é o mais alto dos últimos cinco anos

Em 2022, a PJ deteve 210 pessoas no país por crimes sexuais contra crianças. Em entrevista à Lusa, coordenador desta área, explica como o anomimato das vítimas de abusos na Igreja impede investigação

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Maioria dos condenados por abuso sexual leva pena de prisão suspensa. PAULO PIMENTA (ARQUIVO)

A Polícia Judiciária (PJ) deteve 210 pessoas em todo o país por crimes sexuais contra crianças em 2022, o valor mais alto dos últimos cinco anos, revela o coordenador de investigação criminal para estes casos em Lisboa e Vale do Tejo, José Matos.

Numa entrevista à Lusa, o responsável descarta a necessidade de um eventual agravamento das molduras penais para os arguidos por abuso sexual de menores, mas admite que o excesso de aplicação de penas de prisão suspensas pode ser um problema.

Quase duas semanas após ser conhecido o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica portuguesa — que recolheu 512 testemunhos e estimou a existência de pelo menos 4815 vítimas desde 1950 —, o responsável da PJ sublinha que face ao anonimato das denúncias será muito difícil investigar os 25 crimes que foram reportados ao Ministério Público.

José Matos esclarece ainda que a moldura penal para o abuso sexual de crianças — que vai desde uma pena mínima de um ano até um máximo de 10 — pode, mediante determinadas circunstâncias, ser agravada em um terço ou mesmo metade. Por outro lado, enfatiza que cada abuso é um crime e se uma vítima sofrer do mesmo abusador cinco actos, então são cinco crimes pelos quais o abusador pode ser responsabilizado criminalmente.

"Já tenho aqui condenações de 25 anos, óbvio que, infelizmente, é quando há dezenas de abusos e em cúmulo jurídico dá 25 anos. Mas temos penas de 16 ou 18 anos por quatro ou cinco abusos", realça o responsável da PJ, embora reconheça que tudo depende da discricionariedade do juiz perante o respectivo caso.

Penas suspensas: "Um efeito de não justiça"

Confrontado com os dados da Direcção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) de 2021, que indicam que a maioria dos condenados por abuso sexual de menores nos tribunais foram alvo de penas de prisão suspensas e que somente 31% viram ser-lhes aplicadas penas de prisão efectiva, José Matos reconhece que esta realidade pode ter um impacto pernicioso.

"A pena suspensa tem sobre o abusador um efeito de não justiça. Fica incólume e acha que os actos que cometeu não foram assim tão graves, porque, foi chateado pela justiça, foi chamado, foi alvo de um inquérito, mas o aplicador da justiça aplicou-lhe uma pena suspensa. Então, em alguns pode inculcar a ideia de que os actos não foram tão graves, porque senão teriam ficado em prisão efectiva", explica.

Por outro lado, aponta ainda a questão da reincidência, algo que diz verificar-se com frequência neste tipo de criminalidade, como um aspecto a considerar pela justiça. "É um comportamento desviante ao nível da sexualidade e se é um comportamento desviante é algo intrínseco à pessoa", nota.

Na entrevista, José Matos sublinha que os dados de 2022 ainda não estão consolidados, mas destaca o peso dos crimes sexuais contra crianças na criminalidade sexual global. As estatísticas da PJ indicam um crescimento gradual do número de detidos nos últimos cinco anos, uma vez que em 2018 houve 192 detenções, subindo para 195 em 2019 e 207 no ano 2021, sendo a excepção 2020, com 173 detidos, num ano marcado pela pandemia de covid-19.

"Só relativamente aos crimes sexuais perpetrados contra crianças, a PJ fez no ano passado 210 detenções, num total de 276 [por crimes sexuais]. Este número reflecte também o rácio da totalidade de crimes sexuais perpetrados contra crianças e contra adultos: cerca de 70% são sempre crimes sexuais perpetrados contra crianças ou jovens até aos 18 anos", afirma.

Mais vítimas de abusos e violação

Segundo o coordenador da PJ, que lidera esta área em Lisboa e Vale do Tejo há três anos, a maioria das investigações criminais incide no abuso sexual de crianças, seguindo-se os crimes de violação (tanto contra maiores de idade como abaixo dos 18 anos), pornografia de menores e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. E os dados já recolhidos por este órgão de polícia criminal apontam ainda para um aumento do número de processos e de vítimas.

Sobre o perfil do abusador sexual de crianças em Portugal, José Matos refere que corresponde a um homem acima dos 25-30 anos e que, normalmente, está próximo da vítima.

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PAULO PIMENTA

O responsável da PJ alerta para a importância da relação de confiança e ascendência que muitos dos abusadores têm relativamente às crianças, levando a que muitas destas, inicialmente, nem tenham noção de que estão a ser abusadas.

José Matos considera que o anonimato das vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa dificultou a possibilidade de se fazer justiça, mas compreende a opção, quando o objectivo era obter o máximo de depoimentos possível para caracterizar aquele fenómeno específico. "O crime sexual é um crime contra as pessoas. E, se eu só tiver o abusador e não tiver a vítima, não tenho 'corpo'. Não consigo fazer prova de um crime sexual se não tiver uma vítima", refere.

"Para um dos objectivos da comissão é óptimo, mas para a investigação criminal e a realização da justiça é muito difícil, para não dizer impossível. (...) Por isso é que a maioria dos processos o MP nem sequer remeteu à Polícia Judiciária. Porque os elementos eram tão parcos, tão limitados, que não se conseguia fazer [nada]", observa.

Agressor: adulto, homem, até 60 anos

De regresso ao perfil do agressor, José Matos destaca: "É um adulto, maioritariamente é homem, tem acima de 25-30 anos e depois pode ir até aos 50-60 e, de facto, está próximo da criança", refere, sem deixar de notar que o crime sexual "não vê estratos sociais ou económicos".

Segundo José Matos, um abusador sexual "tem um desvio do comportamento ao nível da sexualidade", existindo factores que podem potenciar esse desvio e levar a consumar o crime. Todavia, apesar de notar que ainda persistem "cifras negras" a este nível na sociedade portuguesa, o coordenador indica que estas têm vindo a diminuir, fruto de uma maior sensibilização pública.

José Matos reconhece que os meios disponíveis para investigar estes crimes permanecem aquém do desejável, embora saliente o esforço da Direcção Nacional da PJ para reforçar o combate a esta realidade. "Nos meios há sempre o ideal, o óptimo, o bom, o suficiente, e nós estamos muito longe do ideal. Na secção que investiga Lisboa e Vale do Tejo, que tem uma área geográfica e uma densidade populacional imensa, temos activos cerca de 490 inquéritos e tenho 20 pessoas a trabalhar esses 490 inquéritos. Os meios são deficitários, porque todo o crime deve ser investigado o mais rápido possível e com o máximo de ferramentas ao dispor", admite.

Relativamente à sugestão da comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht de que os crimes sexuais contra crianças só deveriam prescrever quando a vítima completasse 30 anos, o coordenador da PJ recorre à experiência dos últimos três anos para assumir que tal alteração teria um impacto "residual", traduzindo-se em poucas dezenas de casos.

"Face à minha experiência nos crimes perpetrados contra crianças e jovens, a questão dos 10 anos de prescrição até se alarga, porque se a criança for alvo de um abuso aos cinco anos, o Código Penal permite que até aos 23 ela possa fazer a denúncia, ou seja, alarga de 10 para 18 anos. A partir de certa idade, é que entra a questão da prescrição apenas dos 10 anos, mas, em termos de realização da justiça, esse tempo dos 10 anos é suficiente", finaliza.

De acordo com os dados fornecidos à Lusa, os 2410 inquéritos abertos por suspeita de crimes sexuais em 2022 quase repetem o nível de processos instaurados em 2021, quando se contabilizaram 2.405 (64% de crimes presenciais e 36% "online"). O valor ultrapassa os 2.103 de 2018, contudo, é menor do que o registado em 2019 (2.753, dos quais 66% presenciais e 34% "online") e, sobretudo, de 2020, ano do primeiro confinamento em que houve 3.773 processos e que inverteu a proporção entre crimes presenciais e "online" (42% para 58%).

Por outro lado, o coordenador de investigação criminal assinala a importância de haver sempre agentes de prevenção para que haja uma resposta rápida a esta criminalidade (contra crianças e adultos), relembrando que a primeira detenção no ano passado pela Secção de Investigação de Crimes Sexuais da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo ocorreu na madrugada de Ano Novo.